Thursday, November 11, 2010

O Homem e o Mar











O Homem e o Mar

Homem livre, o oceano é um espelho fulgente
Que tu sempre hás-de amar. No seu dorso agitado,
Como em puro cristal, contemplas, retratado,
Teu íntimo sentir, teu coração ardente.

Gostas de te banhar na tua própria imagem.
Dás-lhe beijo até, e, às vezes, teus gemidos
Nem sentes, ao escutar os gritos doloridos,
As queixas que ele diz em mística linguagem.

Vós sois, ambos os dois, discretos tenebrosos;
Homem, ninguém sondou teus negros paroxismos,
Ó mar, ninguém conhece os teus fundos abismos;
Os segredos guardais, avaros, receosos!

E há séculos mil, séc'ulos inumeráveis,
Que os dois vos combateis n'uma luta selvagem,
De tal modo gostais n'uma luta selvagem,
Eternos lutador's ó irmãos implacáveis!

Charles Baudelaire, in "As Flores do Mal"




Tuesday, November 2, 2010







É Talvez o Último Dia da Minha Vida

É talvez o último dia da minha vida
Saudei o sol, levantando a mão direita,
Mas não o saudei, para lhe dizer adeus.
Fiz sinal de gostar de o ver ainda, mais nada.

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"

Aroma, Essência, Pólen, Harmonia…









Aroma, Essência, Pólen, Harmonia…

Eu que só gosto de vestidos velhos,
de velhas casas com paredes tortas,
de poeiras ancestrais, de cinzas mortas,
de desbotados rosas e vermelhos;

eu que só gosto de velhos quintais
com ásperas roseiras mal regadas;
de cortinas de rendas, passajadas
por velhos dedos com velhos dedais;

eu que só gosto de velhas gavetas,
de velhas malas com cetins puídos,
sedas, fitas, perfumes esquecidos,
leques, missais, raminhos de violetas;

eu que só quero o que ninguém cobiça,
oiros de sol e pratas de nevoeiros,
filigranas de flores nos canteiros,
folhas soltas que o vento desperdiça,

espuma de marés, conchas vazias,
cintilações de estrelas, céus distantes,
gotas de orvalho – frescos diamantes,
canções de búzios – verdes melodias;

eu que só peço a Deus o que sobeja
de humanas ambições e vãs partilhas,
continentes de luar, sonhadas ilhas,
nuvens de fumo que ninguém deseja;

eu que só quero a rude sinfonia
do vento à solta, e os dedos de veludo
da chuva nos beirais da minha rua,
aroma, essência, pólen, harmonia,
eu, que não quero nada,
quero tudo:
quero a Poesia.

Fernanda de Castro, in «Exílio», 1952